terça-feira, 15 de abril de 2008

15 Minutos de Deus

MAX COSTA
Não me lembro bem quando, mas, foi numa dessas tardes quentes de verão. Era domingo; e como de costume, sentamo-nos eu e a família na calçada em frente de casa para, saborear um mate gelado com gengibre, juntamente com uns costumeiros amigos: Bernardo (Bambino) Ginatti e sua adorável família, velhos amigos de tantos carnavais, (do tempo em que o nosso mate era “batizado” com São João da Barra!) Bambino é aquela típica figura bonachã; alma expansiva, sempre disposta a como ele mesmo diz “cornetear alguém”; e sempre cheio de histórias pra contar; (as mais impagáveis possíveis).
Pois bem, estamos ali, bebericando um mate, aproveitando a inexistente brisa de fim-de-tarde quando, paá! Minha visão captou! Do outro lado da rua, uma das mais exóticas aparições que eu tive a raríssima oportunidade de apreciar: Envergando um não menos raro e impecável terno “ocre-ofuscante”, enforcado por uma robusta gravata branca de crochê, do tipo “língua-de-vaca” e açambarcando um bíblia tamanho enciclopédia, um respeitável negrão também sou negro, embora miúdo de seus bons metro-e-oitenta; pasmei! Imediata e sutilmente, toquei e apertei o braço de D. Adriana (é um sinal nosso) e ela o de D. Theresa esposa de bambino ela por sua vez, toca no marido que, logo olha e também se toca! Ficamos olhando para aquele “obelisco negro”. Ele se deslocava sem pressa, porém, firme, grave, quase solene; ao nos perceber, no ponto em que estava de frente conosco, virou-se e, estendendo a mão espalmada em nossa direção pareceu aquele homem do raá! nos cumprimentou de modo esmerado e formal: “Boas tardes senhores! A paz do senhor Jesus”! Com nossas embasbacadas caras de bolacha e um risinho amarelo, retribuímos com um chocho: “Boas tardes”, exceto bambino que, esmerando-se em simpatia ele não ia perder uma chance dessas, né? lhe dirige uma exagerada mesura e lhe responde com um demorado: “Muito boa tarde pastor Norberto, a paz de Jesus também para o senhor! E de lá, o pastorzão manda bala de volta: “A paz de Jesus pra todo nós meu irmão, pra todos nós”! Um carrão novo passa na rua entre nós, devagarzinho, apreciando a cena; o colosso religioso faz um gesto aquele do raá! também para eles e, girando sobre os calcanhares, vai embora, cumprindo sua solene e solitária procissão. Silencio total! Todo mundo com um contido riso disfarçado, uma cara falsamente séria.
Mas, ô diabos! Alguém tinha que me dar uma explicação qualquer para aquele... “Fenômeno Jesuíta”, “aparição cristã” ou qualquer outro nome com que se pudesse identificar aquela criatura! Virei-me para Bernardo Bambino e em meio a riso cínico, indaguei ao nosso “vitalício mestre de cerimônias”: Ô Bambino, você conhece esse... Essa, figura exótica?! E o danado do italiano que pior do que nordestino contador de estórias - adora contar um “causo”, já foi logo dizendo: Se eu conheço o pastor Norberto? Pois, se eu sou o pai dele! Ninguém se agüentou, risada geral! Eu de cara já cortei a delonga: “Ô rapaz, deixa de molecagem, o homem deve ter a idade do teu avô e é afro-descendente, vai lá, conta o que você sabe sobre aquele figurão fantasiado de abóbora! Ai ele faz um suspense e fala com um ar de sabe-tudo: Pega lá mais suco de mato (ele fala assim de todo chá) que eu vou te contar uma daquelas, irmãozinho, daquelas! E vou dizer exatamente o que aconteceu, sem enfeites!
Subimos todos para dentro de casa, Bambino alojou a grande barriga no sofá, uma caneca de mate na mão e, - como é costume dos contadores de histórias fez um discurso preliminar, afirmando que a tal história, era mais fiel à verdade que a bíblia! Terminado o floreio, nos contou finalmente a sua versão a respeito do bispo Norberto: “Pra começo de conversa, o pastor Norberto Cardoso, esse respeitável discípulo de Jesus, nem sempre foi essa pessoa que nós vimos hoje; até algum tempo atrás, ele era conhecido apenas como: “Nó aberto”, porque andava com as calças sempre caindo, mal amarradas por um cadarço de coturno, ele sempre achava que o apelido se referia ao...Nó!(fez um gesto obsceno) sabem como é, o de bêbado não tem dono! (gargalhadas!) Então,sempre que alguém de algum ponto escondido lhe gritava: “Nó aberto”! Ele já mandava de volta: “Aberto é o nó da tua mãe, aquela frôxa, seu filho duma égua! E uma enxurrada de outras palavras “doces”. Era o bêbado mais escrachado que já existiu aqui pros nossos lados; sabem a Chica-pé-duro, aquela cachaceira que só andava descalça? (todos fizemos: Uuhg! E cara de nojo) Pois é, ele foi namorado dela; e não era por falta de mulher não que, D. Adélia, sua esposa, é uma coroa até muito bem apanhada; o que mata é a carolice católica dela; aquele monte de roupa comprida e aquele eterno rosário na mão; morria de vergonha do Norberto, a coitada. De quando em sempre era obrigada a recolhê-lo da calçada do bar, onde sempre dormia, todo vomitado; aí era dia de show, ela o ia arrastando ele pela rua, rogando-lhe mil pragas: “Que Deus te castigue, seu pinguço desgraçado! O diabo ainda vai levar a tua alma! E o Norberto, lá do fundo da carraspana retrucava, sorrindo, com a voz engolorada: Lheva nada Delinha, que nosso sinhô “potrege” as criança e os “beudo”! E dava risada...Mas, um dia,os anjos estavam de mau humor e disseram, amém! E as pragas de D. Adélia colaram nas costas daquele futuro homem de Deus. Naquela noite, o Norbertão, morto de bêbado, caiu na minha varanda; era já madrugada, como eu estava insône, fiquei assistindo televisão; ouvi um barulho,espiei pela persiana e lá estava ele; o rosto brilhando de suor e desfigurado pelo esforço do vômito; tentava desesperadamente se levantar mas, não conseguia,tremia, resvalava e voltava a cair. Aí, começou a chorar e a implorar: “Ô João! Ô João, bicho “horrive”, me solta meu, dex'eu ir, bicho danado; (eu acho que ele estava vendo o “mungango”). Num dado momento, pediu ajuda pra Deus: “Ô mô Deus! Me ajuda mô Deusin! Ó, eu nunca mais que eu encosto mais nenhuma gota de bebida nessa minha boca pingunça, eu prometo, eu prometo! Ô João, solta eu sô, dex'eu vazá, fio duma égua! Nessa hora eu não me agüentei, eu tinha que tirar uma gozação em cima daquele cachaceiro safado! Fiz uma voz cavernosa e comecei a dizer: Norbeerto! Ôô, Norbeerto! Sou eu, Norberto, Deus! Seu bêbado sem vergonha! Apronte-se para acertarmos nossas contas, pois chegou sua hora Norbeerto! Ele ficou congelado por um instante, pra depois responder, em pânico: “Deus?! Ô mô Deusin, pelamor de Deus, num deixa não, o bicho me levar, eu num bebo mais, num bebo mais! E eu: “Bebe siim! Que você é um cachaceiro perdido, agora você vai morrer e vai para o inferno! Direto pra mão do capêtaa! Nessa hora, o pânico foi maior que a cachaça; ele conseguiu se levantar e saiu, cai-não-cai, tentando correr, falando noite a dentro, desesperado: “Faz isso não mô Deusin! Faz isso não, num bebo mais ,num bebo mais, me solta João! E foi embora madrugada afora, na certeza de que havia falado com Deus! (Apenas bambino sorriu, ninguém mais). Ele continuou sua narrativa: Depois disso, “Norbertão” sumiu, todos pensavam que ele havia morrido; passou-se mais de ano, até que um dia, me apareceu esse pastorzão aí, que vocês viram, me agradecendo e me contando o mesmo fato que eu tinha visto naquela noite e afirmando que ali, na varanda da minha casa, Deus havia feito um milagre na vida dele! Vocês entenderam? Fui eu quem fez o milagre e não Deus! Fui eu quem criou o pastor Norberto! E Bambino ria, ria! Ria que chorava; mas, eu percebi que nós, sua platéia, ficamos um tanto impressionados com aquela estranha maneira de Deus agir. Bem, se foi Ele mesmo, ou não, isso ninguém saberá jamais; o fato, porém, é que, de uma forma ou de outra, numa estranha noite de insônia, Bernardo “bambino” transformou o bêbado “nó aberto” no respeitável pastor Norberto, conquistando assim, não apenas quinze minutos de fama, como todo mortal comum, mas, quinze minutos de DEUS!

Max Costa é escritor e poeta, idealizador e fundador da Confraria do Artista de Assis

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