quinta-feira, 15 de maio de 2008

Relicários e ourives do tempo

ALINE GIANAZZI

"Nada consigo fazer.
Quando a saudade aperta.
Foge-me a inspiração.
Sinto a alma deserta.
Um vazio se faz em meu peito.
E de fato eu sinto.
Em meu peito um vazio(...).
E com o tempo.
Essa imensa saudade que sinto.
Se esvai".

Peito vazio. Cartola

Tenho cinco anos. Meus cabelos ainda são loiros. O horário é por volta do meio-dia. Minha mãe me deixa na casa azul e branca, da rua Benedito Spinardi. Sou uma criança tão elétrica que nenhuma babá quer ficar comigo. O encargo, então, foi passado pra alguém que tivesse toda a paciência do mundo e que de quebra me amasse: dona Anita Gianazzi, minha vó.
Estamos só nós duas na cozinha. Eu estou sentada em uma cadeira ao lado da pia enquanto ela termina de lavar a louça. Depois de tudo terminado, ela me convida pra uma soneca. Com muita má vontade, aceito. Primeiro, deito na cama de solteiro da minha tia. Depois, tento acordá-la colocando o braço da minha boneca na hélice do ventilador. Ela continua com os olhos fechados. Então, pulo para sua cama, tento enlaçar sua barriga, mas meus braços são curtos demais. Subo um pouco, chego perto da sua nuca e respiro fundo o cheiro dos seus cabelos compridos e brancos. Meus lábios tocam o seu ouvido e eu pergunto baixinho: "vovó, a senhora está dormindo?", ela não abre os olhos, mas com minha mãozinha em sua barriga eu sinto que está rindo. De repente, se vira pra mim, cola sua testa na minha e olha fundo nos meus olhos. Beija-me muito. Eram muitos daqueles beijos gostosos. Durmo abraçada ao seu braço, tão molinho da idade.
Tenho 16 anos e estou na casa azul e branca novamente. Dessa vez, quem cuida sou eu. Deito no sofá da sala de estar, com a cabeça em seu colo. Sinto sua mão, que mesmo tendo trabalhado tanto é de uma maciez incomparável, se perder nos meus cabelos, agora castanhos. Conversamos. Em algum momento, como num passe de mágica, ela dobra nossa vida e nos transporta pra algum lugar do passado. Como em um cinema, vejo meu bisavô desbravar matas para o plantio, vejo a própria Ana, lavando roupa na mina, ajudando sua mãe a cuidar das tantas outras crianças que nasceram depois dela. Vejo meu avô, José, apitando um jogo de futebol, a chegada em Assis com meu tio Nino nos braços. Ela me leva a assistir suas memórias, me faz reviver aquilo que causava saudade e dor e me faz conhecer um pouco da minha história e de mim mesma.
Tenho 17 anos. Vovó está sentada na minha cama, olhando no computador as fotos que nós tiramos do seu jardim. Ela diz que pra ela não há nada de mais bonito. É ano novo. Estamos todos comemorando, e eu pergunto "vó, quem é a sua neta mais bonita", ela cochicha nos meus ouvidos "você", "e quem é a neta que a senhora mais ama?", ela abre o sorriso maior do mundo, e repete "você".
Tenho 19 anos, e o tempo é o agora. Estou sentada na sala de tv da casa azul e branca, olhando vovó enquanto ela cochila. Já estava trocando o dia pela noite. Quando seu pescoço cai, ela acorda. Olha pros meus olhos assustados e ri. "Ah, minha branquela, é você que está aí", e me puxa pra um beijo.
A morte é tão recente que parece mentira. A dor me fez descobrir que sou sim, deveras egoísta. Não é só o meu amor por ela que a distância transforma em sofrimento, mas o amor que ela dedicou a mim. Foi pouco tempo, vovó. 19 anos é pouco pra experiência maravilhosa que era viver com a senhora. Confesso que queria mais. Mais dos seus beijos, dos seus abraços, do cheiro dos seus cabelos, das nossas conversas... Só espero que o sofrimento seja pra mim o que foi pra senhora: um ourives. E que um dia, quem sabe, eu me torne uma jóia quase tão preciosa quanto a senhora foi.

Aline Gianazzi é aluna de Jornalismo da Fema

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