sexta-feira, 4 de abril de 2008

Provérbios rurais e história do Brasil


PAULO HENRIQUE MARTINEZ

O artigo de Eduardo Diniz Junqueira, “Quem chega atrasado bebe água suja”, publicado em O Estado de S. Paulo (26/março/08), é emblemático daquilo que digo aos estudantes de História: as temáticas ambientais são um fecundo caminho para conhecer a formação da sociedade brasileira. Por esta razão, tenho recomendado a sua leitura dentro e fora das salas de aula.
Um fazendeiro ilustrado é ave rara em nossa história, secularmente marcada pela rudeza mental e pela brutalidade física do capital agrário. No Brasil, entre as grandes famílias de proprietários rurais floresceram muitos talentos intelectuais. O historiador paulista Caio Prado Júnior (1907-1990) é, sem dúvida, exemplo cristalino.
A argúcia intelectual de Eduardo Diniz Junqueira em extrair uma compreensão do passado a partir do dito popular é instigante. Na década de 1940, Florestan Fernandes debutou na pesquisa sociológica estudando “máximas” e “adivinhas”, ditas folclóricas, na cidade de São Paulo. Hernani Donato compilou valiosa seleção de “Cem ditados rurais paulistas”, na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo. Há anos Rolando Boldrin esmera-se em difundir, nos programas de televisão, a imaginação poética e musical da cultura dita caipira. E Chico Buarque de Holanda, filho de historiador, condensou em verso, a nossa história rural: “amplidão, nação, sertão sem fim”.
O refinamento ilustrado do fazendeiro e escritor, sem dúvida, o distingue. A sua compreensão da história brasileira, tatuada no provérbio que dá título ao artigo, porém, revela descompasso social e político com a atualidade. É elucidativo, por isso mesmo, do nosso passado e do nosso presente. Longe de acreditar que o governo Lula seja uma melancia política (verde por fora e vermelha por dentro), pois também neste aspecto o PT no governo federal ficou aquém das suas possibilidades e das necessidades históricas do país, a incorporação de variáveis ambientais é, hoje, uma necessidade nas políticas públicas e na iniciativa privada. Desde a década de 1990, economistas como Geraldo Muller, por exemplo, apontavam o lugar estratégico do meio ambiente e de alguma justiça social para a inserção competitiva no mercado mundial do século XXI.
É pesaroso ver a lamúria de Eduardo Diniz Junqueira, que emerge no ditado que escolheu para traduzir seus sentimentos, diante do fato de a Amazônia ter escapado ao ferro e ao fogo dos nossos empreendedores rurais. Tanto quanto não é intrinsecamente mal, o desmatamento também não pode ser considerado uma virtude e uma necessidade inexorável. O Haiti é um país careca de cobertura vegetal e não conheceu desenvolvimento algum. A pilhagem das vastas florestas tropicais do Congo não faz deste país um exemplo nem de conservação e nem do desenvolvimento humano.
O historiador norte-americano Warren Dean, atento, também recolheu um provérbio caboclo para abrir o seu livro sobre a ocupação territorial do Brasil e a supressão da chamada Mata Atlântica: “quem vier depois que se arranje”. Em ambos os casos, a sabedoria e a simplicidade popular exalam uma dramática idéia de desenvolvimento e de futuro para a sociedade brasileira. Tanto em um quanto no outro estão embutidos traços indeléveis da nossa formação social e econômica, caracterizada pelo exacerbado individualismo, a sanha pelo lucro fácil e rápido, a indiferença para com os destinos coletivos, a violência social e a rapinagem ambiental.
A semelhança nos conteúdos desses provérbios é diluída pelas interpretações de cada um dos autores referidos. Enquanto o fazendeiro lamenta a perda de tempo e de supostas glórias de outrora, o historiador padeceu a angústia de que o século XXI assistisse, mais uma vez, a cenas vivas do passado. Ele temia a destruição das florestas do norte do Brasil, por exemplo, animando a perda da biodiversidade, a espoliação das terras indígenas e a concentração da renda e da pobreza urbana, tal como ocorrera no sudeste.
O fator tempo, o “atraso”, também comparece na lembrança trazida por esses provérbios. Para Junqueira, houve atraso em desmatar a Amazônia, quando derrubar e queimar as florestas eram entendidos, por alguns e por ele, tristemente, como sinônimos de riqueza e de progresso. Para Warren Dean, o atraso estava na relutância em formular, ainda nos anos 1990, políticas e alternativas em busca de outro tipo de desenvolvimento, que resultasse em benefícios materiais mais abrangentes e culturalmente mais profundos.
Os passivos ambientais e sociais do novo século sugerem repensar os provérbios rurais, a história e o futuro do país. Eles sopram outro ditado rural: “o risco que corre a árvore, corre o machado”. A Amazônia será o pontal do Paranapanema de amanhã?

Paulo Henrique Martinez é professor e coordenador do Laboratório de História e Meio Ambiente na Unesp/Assis.

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